Angelo Venosa costuma contar duas histórias que marcam, respectivamente, sua infância e sua juventude, contribuindo de forma não-esquemática para a sua formação como artista. Na primeira, o irmão mais velho relata a trama de um filme de terror, no qual um serial killer mata as estudantes de um colégio interno, esquarteja seus corpos e tenta fazer com os pedaços uma menina perfeita. Na outra, em sua primeira visita à Itália ancestral, o artista acaba se perdendo no mapa de Roma e termina diante do Pulcino della Minerva (1667), de Bernini. Conhecido também como Obelisco do elefante, o monumento une duas peças distintas: uma ponteira poliédrica marcada com hieróglifos, saqueada pela exploração europeia do Egito, e a figura do animal, que ganhou forma pelas mãos de um assistente do escultor e sustenta a forma geométrica no dorso.

texto exposição Daniela Name

Quasi

Angelo Venosa, a encarnação das travessias

Angelo Venosa costuma contar duas histórias que marcam, respectivamente, sua infância e sua juventude, contribuindo de forma não-esquemática para a sua formação como artista. Na primeira, o irmão mais velho relata a trama de um filme de terror, no qual um serial killer mata as estudantes de um colégio interno, esquarteja seus corpos e tenta fazer com os pedaços uma menina perfeita. Na outra, em sua primeira visita à Itália ancestral, o artista acaba se perdendo no mapa de Roma e termina diante do Pulcino della Minerva (1667), de Bernini. Conhecido também como Obelisco do elefante, o monumento une duas peças distintas: uma ponteira poliédrica marcada com hieróglifos, saqueada pela exploração europeia do Egito, e a figura do animal, que ganhou forma pelas mãos de um assistente do escultor e sustenta a forma geométrica no dorso.

A garota-Frankenstein do filme, o elefantinho carregando um passado estrangeiro nas costas: seres submetidos a uma remontagem alegórica que enfatiza seu não-pertencimento a uma linearidade cronológica e espacial, exatamente como ocorre com as esculturas de Venosa.

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O conjunto de trabalhos reunidos em Quasi ilumina a trajetória percorrida pelo artista. Mais do que construir uma obra “fronteiriça”, palavra que daria conta mais diretamente apenas das questões do espaço, Venosa tem se dedicado a uma escultura no limiar, que conjuga e enfatiza as contradições de um corpo andrajoso, feito de fragmentos, e sempre inoculado por tempos diversos.

Uma obra em constante exílio: se por um lado pode nos apresentar corpos quase-mortos, que parecem estar sendo calcinados e fossilizados, por outro nos oferece seres quase-vivos, que talvez estejam saindo timidamente de um estado de coma persistente para ganhar ânimo, brotar. Nos dois extremos do movimento do pêndulo, a repetição do “quase” - ou quasi, grafado aqui italianado e da maneira antropófoga de Mario de Andrade (a antropofagia não deixa de ser um exílio, afinal).

As esculturas negras do início da carreira estariam mais próximas do primeiro movimento, o das quase-mortas, assim como Catilina, apresentada em 2019 no Paço Imperial do Rio de Janeiro como uma grande metáfora para a degeneração. Quasi, por sua vez, reúne trabalhos que parecem insistir em estar vivos, e resgatam um fôlego extra para se prolongar a partir de seus núcleos de origem, redondos, abobadados (e, se essas formas de sustentação de eixos lembram a relação de Venosa com a insinuação de figuras orgânicas, sobretudo de animais marítimos, reforçam também um diálogo com a arquitetura). Esses seres quase-figura e quase-abstratos projetam filamentos que serpenteiam pela sala em movimento ascendente, como cordões umbilicais buscando a conexão do corpo da escultura com outros corpos - paredes, pisos, peles, memórias.

É preciso falar da radicalidade experimental de Quasi, que situa as peças reunidas nesta exposição como um marco no processo criativo de Venosa. Desde o início dos anos 2000, o artista investiga processos de digitalização e projeção virtual. Há três momentos notáveis em que essa investigação técnica contribuiu de maneira decisiva para a criação de uma nova linguagem, acrescentando ainda um bem-vindo grau de risco na execução das esculturas. Em todas as ocasiões, o resultado plástico é atravessado pela disparidade e de indeterminação, ampliando a opacidade e o deslocamento que constituem o DNA exilado das criaturas do artista.

Na primeira ocasião, em 2012, Venosa criou para sua exposição panorâmica do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro uma peça sem título cuja superfície era formada por triângulos pretos unidos por lacres industriais. Ela havia sido formada a partir de experiências de modelagem no computador: os triângulos aludem à resolução dos polígonos, constituem a malha virtual informe que vai sendo remexida pelo artista e propositalmente não ganha uma forma “acabada”, “resolvida”, vem ao mundo enfatizando sua irregularidade e com todos os seus fragmentos costurados - cicatrizes expostas na “pele”.

Em 2016, o artista criou para o Museu do Açude uma obra monumental, Gabbah, que insistia na irregularidade e, mais do que isso, em certo “derretimento” do corpo. Embora pesando toneladas - um eixo de aço, anéis de madeira, revestidos por muitas camadas de epóxi cerâmico -, ela mantém um aspecto mole, de certa flacidez muscular. Conviver com a escultura no meio da mata é ter a sensação sinestésica de que ela pode ser apertada, de que foi feita para pegar, de que podemos refazê-la, gerando novas protuberâncias em seu corpo não simétrico.

E, ao chegar à não-simetria, encontro uma trilha de volta para Quasi. A obra de Venosa sempre foi marcada por certo espelhamento. Os dispositivos digitais, no entanto, deram ao artista a oportunidade de esgarçar seus métodos de composição. Designer de formação, Venosa teria condições de tirar partido da virtualidade para gerar um “aperfeiçoamento de performance” em seu desenho, ou seja, para tornar ainda mais rigorosa e formal a simetria sempre insinuada em seu trabalho. Mas ele vem fazendo justamente o oposto: se em 2012 mexeu na “pele” da peça fragmentada e em 2016 moldou a “carne” da escultura do Açude, agora, em Quasi, atua diretamente na estrutura de suas criaturas, girando o eixo onde estão encaixadas as lâminas de madeira que as constituem. É como se, depois de atuar na superfície e nos músculos, o artista estivesse se dedicando ao esqueleto de seus seres, dando a eles novas possibilidades de articulação - nos planos real e simbólico.

“Tenho a sensação de que estou sempre no princípio, sempre começando”, me diz Venosa, e isso é uma forma muito simples e igualmente sofisticadíssima de entender como as peças reunidas em Quasi podem iluminar o caminho percorrido por este criador até aqui. O duelo entre ascensão e queda e a noção de exílio que marcam as mais de quatro décadas de produção do artista não deixam de ser uma resposta singular a um raciocínio barroco e alegórico que permeia sua geração, a dos artistas que começaram a trabalhar na década de 1980. Ao recuperar uma relação afetiva e expressiva com a imagem, esse grupo fez a arqueologia de um raciocínio visual que atravessa a formação das artes plásticas brasileiras, que é justamente o da alegoria barroca.

Ainda mais barroca por conjugar a elipse e a síntese, esta mostra na galeria Nara Roesler é feita de espirais: se por um lado o artista parece retornar a um raciocínio do início da carreira, por outro essa “volta” se dá em outro nível, lindamente desencontrado. Mais leves e quase-transparentes, as esculturas de agora, revestidas com a translucidez do ectoplasma, estabelecem uma relação fantasmática com a própria história de Venosa e com o repertório de imagens que sempre o assombrou. Elas se retorcem procurando a memória do que já foi e se esgueiram para alcançar o que ainda pode vir. Retorno como diferença. Futuro como lastro. Quase-passado, quase-adiante: uma exposição que amplia a visão da escultura do artista como uma encarnação de travessias.