Venosa modela o avesso de uma arte que se tornou sinônimo de referências culturais, políticas e estéticas. “Acredito cada vez mais em um trabalho cego, em que você tem noções de direção, mas não sabe exatamente como vai chegar, nem por que caminho”, diz o artista, que há anos utiliza formas naturais e materiais orgânicos em suas esculturas. Num país como o Brasil, esse tipo de trabalho implica uma ambiguidade perversa, pois à primeira vista pode remeter a toda uma simbologia político-ecológica. Venosa poderia aproveitar a tendência internacional — sobretudo americana — de uma arte “politicamente correta” como estratégia de mercado. Mas ele é fiel demais à ideia da arte como território desconhecido e inexplorado para aceitar seguir pistas previamente demarcadas.

 

entrevists Bernardo Carvalho

ossatura

Acredito cada vez mais em um trabalho cego, em que você tem noções de direção, mas não sabe exatamente como vai chegar, nem por que caminho

Venosa modela o avesso de uma arte que se tornou sinônimo de referências culturais, políticas e estéticas. “Acredito cada vez mais em um trabalho cego, em que você tem noções de direção, mas não sabe exatamente como vai chegar, nem por que caminho”, diz o artista, que há anos utiliza formas naturais e materiais orgânicos em suas esculturas. Num país como o Brasil, esse tipo de trabalho implica uma ambiguidade perversa, pois à primeira vista pode remeter a toda uma simbologia político-ecológica. Venosa poderia aproveitar a tendência internacional — sobretudo americana — de uma arte “politicamente correta” como estratégia de mercado. Mas ele é fiel demais à ideia da arte como território desconhecido e inexplorado para aceitar seguir pistas previamente demarcadas.

Por que começou a utilizar ossos?

Isso tem a ver com o trabalho que eu fazia anteriormente, no qual não havia elementos “reais”, naturais. Via-se uma estrutura recoberta, os volumes não eram maciços. Mesmo tendo se modificado pouco a pouco, esses trabalhos guardam um ponto em comum, que é uma aparência e uma referência orgânica. Com o osso, passei a lidar diretamente com um elemento ao qual antes apenas me referia. Inclusive quando trabalhei com as estruturas de madeira que tinham um revestimento, uma pele, eventualmente cheguei a utilizar ossos, mas tanto podiam ser ossos como qualquer outra coisa: eles se incorporam a essa estrutura. Poderiam até ser aparentes, pois havia um tratamento por cima. Não dava para identificar bem o que era osso, o que era tronco, o que era construído. Não importava.

Na sua opinião, essa passagem do uso do orgânico como referência para o uso do próprio material orgânico como objeto artístico vem de uma busca pelo real ou é apenas uma busca formal?

Penso que existe essa necessidade do real, mas não de maneira planejada nem determinada. Por exemplo, não é gratuito que eu utilize ossos; eles têm força porque são ossos de verdade. Pode parecer um raciocínio meio mágico, como o dos índios, mas funciona ainda assim. E não impede que ao mesmo tempo que estou lidando com ossos eu continue a usar materiais que não têm nada a ver com isso e ocupam o mesmo lugar no trabalho. Existe um osso que pode ser de verdade, ou feito de cera, ou chumbo, a carga visual é a mesma. Em determinado momento a coisa é real, e em outro está representada por um material que não tem nada a ver com o objeto ao qual se refere, sem hierarquias. Na criação desses objetos as decisões objetivas, conscientes, são mais formais que qualquer outra coisa.

Não há o risco de cair num certo preciosismo formal?

Sempre corri esse risco. Meu trabalho tem a característica de andar na corda bamba. Sirvo a dois senhores, por isso há ambiguidade. O lado formal pode correr o risco de ser preciosista, mas esse risco me fascina. Tem a ver com o fato de ir decidindo o caminho enquanto trabalho. Vem daí o perigo.

Nas suas primeiras esculturas a estrutura não era visível, estava coberta por uma tela ou resina que você chama de pele. Pouco a pouco você foi expondo a escultura, mantendo-a coberta. Você vê um projeto nesse trânsito?

Não. Mas de fato há momentos em que decido certos caminhos com clareza, de modo consciente. Então é como se alguém se dedicasse a tirar uma lição dos trabalhos antigos. Eu os observo de fora, como se não fossem meus.

Há uma onda desconstrutivista no mundo, principalmente na arquitetura. Na sua opinião, os seus trabalhos podem ser interpretados dentro dessa corrente ou é um equívoco?

Seria um equívoco se a pessoa pensa que essa relação é preestabelecida. Pode haver essa leitura, mas da minha parte não há uma determinação de orientar o trabalho nessa direção.

Existe algum diálogo entre o trabalho que você faz e o de outros artistas que usam materiais orgânicos?

Vi o trabalho de Damien Hirst em Veneza. Há uma diferença que ainda não consigo precisar muito bem, que é a minha diferença em relação a muitos trabalhos contemporâneos. <TRUNCADO> O que eu vejo é uma arte extremamente informada. São pessoas que estão saindo de escolas com muita informação e a elaboram de um modo que pode ser fantástico, rigoroso, sei lá o quê; mas esse rigor me incomoda, parece uma arte dirigida, com localização precisa. Sempre estão falando de alguma coisa. Não há trabalhos opacos. Alguém olha e começa a decodificar aquilo, a perceber todas as referências que podem ser políticas, estéticas etc. A construção é muito elaborada, no mau sentido, inclusive quando o trabalho é bom. Parece que estão buscando, mas sinto uma falta de vitalidade, de essência pura. Não estou dizendo que o meu trabalho tenha ou não essa vitalidade, mas cada vez me convenço mais de que o melhor na arte acontece quando alguém tem o faro para seguir o caminho, mas não a consciência total. Quando alguém passa a controlar demais, faz um trabalho eficiente, bem-realizado física e intelectualmente, mas esse esqueleto é evidente; a estratégia, óbvia.

Você tem alguma influência ou sente que mantém um diálogo com algum artista contemporâneo?

Não consigo ver influências claras, nenhum trabalho que tenha dado um norte. Há certos ventos, como a arte povera, principalmente Giovanni Anselmo e Zorio. Alguma coisa da escultura inglesa também. Richard Deacon, por exemplo. Não o trabalho especificamente, mas a forma como ele encara a arte. Até onde sei, havia nele um despojamento do processo. O artista lidava com um instrumental muito pessoal e íntimo. Ele é um crafstman.
Havia um certo encanto com o fazer, com a carpintaria, que era muito amoroso e foi muito interessante para mim no começo, quando parei de pintar e comecei a trabalhar com madeira. Era uma coisa que eu fazia sem muito compromisso. Pegar o pincel para mim era pesado demais. A gente se confronta com a pintura como uma coisa histórica. Pegar o serrote era muito mais fácil. Estava lidando — na minha cabeça, obviamente — com carpintaria e com o peso da arte. Via isso em Deacon, e no princípio foi um estímulo. Para o sentido geral do meu trabalho, os artistas da arte povera foram importantes. Não sei se entendo a arte povera do jeito que os próprios artistas do movimento a entendem. Há um lado literário, europeu, que é mais forte na arte alemã, num Beuys, por exemplo, mas que a mim não diz grande coisa. Olho para aqueles trabalhos como aparência, pelo lado da magia provocada pela presença dessas obras no mundo. Não sei e não quero saber a que elas se referem. Acho que é mais fácil ter esse tipo de atitude em relação à arte povera do que em relação a Beuys. No caso dele, isso não está permitido; estamos obrigados a entender a obra no registro do artista.

Como é possível hoje fazer arte num país como o Brasil, onde os níveis de violência são insuportáveis? Como você lida com essa realidade?

Existe uma leitura política do meu trabalho, que não é minha, em que se associam os ossos, os detritos, à realidade social. Essa relação pode estar acontecendo de forma subjacente, mas não existe de modo algum um discurso político explícito em sentido estrito. Apesar de tudo, é lógico que a violenta realidade em que vivemos afeta, e muito. Fiquei furioso no dia em que li sobre a chacina que a polícia cometeu em Vigário Geral. É um sentimento de cansaço e irritação. Isso afeta qualquer ser humano. Na verdade, acho que essa realidade descarrega a minha bateria, tira a minha energia. Essas coisas são muito piores que as carências materiais ou institucionais, ou que não ter um mercado que funcione bem nem uma política cultural nacional.

Você já pensou em utilizar ossos humanos?

Tenho ossos humanos no meu ateliê. Foram os primeiros que comprei. Não é como osso bovino: ninguém pode comprar trinta quilos de dentes humanos, por exemplo. Os ossos humanos têm uma história que os ossos animais não têm. Num primeiro momento isso me assustou, mas agora penso em usá-los. Precisamos desenvolver uma nova maneira de lidar com o material, e o trabalho tem que sedimentar muito do que não foi planejado.

O que você responde aos que interpretam o seu trabalho como uma visão essencialista da cultura brasileira?

Deixo que pensem o que quiserem.