Nos trabalhos anteriores de Angelo Venosa ainda restaram um pouco desse sentimento íntimo e expressivo da natureza.

Texto de Rodrigo Naves

Naturezas mortas

Se Arp e Henry Moore ainda podiam fazer a natureza vir à tona em manifestações harmônicas e plásticas

Os atuais trabalhos de Angelo Venosa demonstram que algumas transformações fundamentais tornaram praticamente impossíveis essas passagens. E isso em boa parte porque a natureza como manifestação tornou-se quase uma lenda, um rumor distante que talvez Jackson Pollock tenha sido o último a poder acolher. Sem dúvida, a ausência dessa dimensão natural impede - ou ao menos dificulta - que as formas se desdobrem a partir de um núcleo interno em expansão, contido a duras penas pela decisão do artista.

 

Nos trabalhos anteriores de Angelo Venosa ainda restaram um pouco desse sentimento íntimo e expressivo da natureza. Na opacidade das peças negras, pressentia-se uma interioridade relativamente à vontade com sua configuração externa, um vínculo estreito entre dentro e fora que também propiciava uma espacialidade mais plausível às obras, na medida em que aquele processo de crescimento momentaneamente bloqueado poderia voltar a ganhar o espaço a qualquer instante acolhendo-o e moldando-o generosamente. Se causavam estranheza por sua aparência rude e incomum, por outro lado as simetrias em que se desenrolavam garantiam alguma regularidade àquelas irrupções incontroladas. A feição arcaica e ancestral das formas não trazia, contudo, a intenção de simples protesto ambientalista, forjando protótipos de uma natureza conciliada consigo mesma ou, ao contrário, traçando testemunhos de uma devastação insana. A relação entre forma e natureza estabelecida por Venosa não é a figuração de um problema surgido em outro âmbito, a tradução visual de questões que lhe são exteriores. Inversamente, a arte é o lugar por excelência da configuração desse tipo de questões - o que já diz muito do seu projeto artístico.

 

Mas se antes a superfície negra de suas peças ainda permitia a experiência de uma atividade interna, agora a relativa transparência dos trabalhos indica que a criação desses volumes instáveis tornou-se extremamente problemática. Quanto mais a visão é compelida a devassar o interior real das obras, menos se vislumbra a existência desse movimento gerador de crescimento. À medida que penetramos o estofo das obras, percebemos, ao contrário, apenas o trabalho que as fez surgir: estruturas de arame e madeira, momentos de um fazer que não soube camuflar seus estágios, pois tornou-se áspero demais para poder realizar esse duplo salto que consiste em ocultar-se na própria matéria em que atua. Em diversas passagens, esses suportes inclusive repelem a cobertura, e surgem em sua crueza canhestra, pois aquilo que deveria colher alguma coisa - ou então expandir-se energicamente - agora aparece numa impotência dilacerante.

 

Com essa trajetória não causa espanto que várias peças de Angelo Venosa tenham se transformado em trabalhos de parede, adquirindo uma frontalidade que as peças anteriores recusavam. Mas se os volumes resistem ao crescimento, como seria possível colocá-los novamente em tensão com o espaço, em plena tridimensionalidade? Não é à toa que algumas dessas esculturas, mesmo mantendo liames que interligam suas partes, estão na iminência de fragmentar-se, rompendo-se em estilhaços. A procura da plasticidade, que persiste, não consegue conferir maleabilidade aos materiais, e eles se estiram aflitivamente, no limite da tensão, sem alcançar a textura elástica que os reconduziria sem dramas ao movimento.

 

Por tudo isso, não resta ao artista senão esse trabalho compulsivo que restitua, pelo manuseio continuado, a possibilidade de modelagem aos materiais. Se antes o trabalho do artista consistia em sustar um desenvolvimento autopromovido, agora resta-lhe a atividade extenuante de agir sem finalidade clara, mantendo tão-somente uma possibilidade de formalização, mesmo que irrealizável. Nada mais coerente.

 

As obras de Angelo Venosa mostram que a perda desse caráter de manifestação da natureza está intrinsecamente ligado ao modo de concepção e intervenção da ciência moderna - ao menos em seus desdobramentos tecnológicos, se é que essa separação ainda é plausível. Transformada em terreno anódino de projeção de paradigmas, dificilmente ela ainda poderia conseguir expressão. Portanto, não cabe à arte atribuir-lhe ingenuamente um pulsar insondável, embora não renuncie à escuta de seus rumores. Mas tampouco é tarefa da arte reiterar sem qualquer reflexão um tipo de atividade desastradamente formalizador, um modo de atuar que desconsidera a resistência das coisas. No entanto, revelar só isso seria pouco.

 

Nessas obras a natureza é antes monstruosidade que placidez, porque, ao que tudo indica, esse saber unívoco, a ciência, quer mais. Por um lado, há nos trabalhos de Angelo Venosa um esforço de formalização que não se cumpre, onde as coisas ficam a meio caminho entre o que poderiam ser e o que realmente são - no hiato existente entre esses dois momentos irrompe uma indefinição radical, ameaçadora, quando a ausência de direção ou sentido de algo nos coloca diante do inominável. Por outro, observamos um fazer que, por ver retirada sua finalidade, amontoa-se assustadoramente, sem saber obter alguma coisa de sua atividade. Do cruzamento desses dois movimentos obtém-se essa presença aterradora a que não sabemos dar definição ou uso: a compreensão lúcida e crítica do passo ousado - e talvez último - que parece seduzir a ciência, a tentativa de produzir uma segunda natureza, um constructo artificial mas com a interioridade do mundo. A tentativa arrogante de simular o gesto divino, mesmo conhecendo o destino dos que colhem irrefletidamente o fruto da árvore da ciência do bem e do mal.